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CÁPSULA DO TEMPO

  • josenobre7
  • 10 de abr. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 28 de abr. de 2024


A cápsula do tempo III Parte: Uma escola prisioneira (mas… ) no Portugal da ditadura

Emília Margarida Marques, Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-Iscte / IN2PAST)

 

I

Será que a cápsula do tempo que espreitámos em janeiro e março no Ponto & Vírgula – isto é, o arquivo da Escola Industrial Guilherme Stephens do distante ano letivo de 1944-1945 – e que novamente agora abrimos, tem alguma coisa para nos dizer sobre a tenebrosa ditadura cujo fim festejamos em 25 de abril?

Pois não podia deixar de ter! Já se sabe: uma população com acesso à cultura e ao conhecimento é muito mais difícil de oprimir e de explorar. Por isso, a escola – isto é, a liberdade de aprender e de ensinar – foi um dos primeiros alvos do regime fascista que se instalou em Portugal a partir de 1926.

Como vimos anteriormente para o caso da Escola Industrial Guilherme Stephens, em 1945 a escola estava ao alcance de poucos e a oferta educativa podia ser muito restrita, omitindo campos inteiros do conhecimento humano. Ou seja: uma escola fortemente limitada na sua função mais básica. Uma escola prisioneira.

 

II

Na verdade, duplamente prisioneira. Além de estar impossibilitada de cumprir verdadeiramente a sua missão, a escola devia trabalhar para quem a oprimia.  A ditadura transformou a escola num instrumento de controlo e de propaganda ao seu serviço.

O primeiro passo era intimidar os professores, tentar convencê-los de que era perigoso pensarem pela sua cabeça. A nossa cápsula do tempo guarda as declarações que o governo os obrigava a assinar, declarando que não pertenciam a “associações secretas” – isto é, a partidos políticos clandestinos que lutassem contra a ditadura (na altura já só restava um, o Partido Comunista Português). Vejam a Figura 1, na galeria acima. E se eu não quisesse assinar? Então, não podia ser professor.

 

III

Além de recear a escola e os professores, a ditadura também não confiava muito nos jovens: têm a mania de imaginar, questionar, pensar de maneira diferente – em vez de obedecer e pronto, como gostam os regimes autoritários Assim, o governo criou organizações para enquadrar os jovens e incutir neles a sua ideologia. As mais importantes, copiadas das Juventudes Hitlerianas da Alemanha nazi, eram a Mocidade Portuguesa(MP), só para os rapazes, e a Mocidade Portuguesa Feminina (MPF) (nada de misturas, como já sabemos).

Ora, a escola era obrigada a servir de correia de transmissão a estes organismos. As atividades da Mocidade Portuguesa – normalmente designadas por “instruções”, porque tinham um caráter militarista, a começar pelas fardas usadas pelos jovens – decorriam nas escolas, eram obrigatórias e a escola tinha de controlar a  assiduidade dos alunos. Por isso encontramos no arquivo várias justificações de faltas às atividades da MP, na maior parte dos casos invocando razões de trabalho. Podem ver na galeria (Figura 2) uma dessas justificações, com carimbo da fábrica de vidros Manuel Pereira Roldão & Filhos Lda. (Já agora: repararam que o número de telefone da fábrica – o 50 – só tinha dois dígitos? Isso mostra como havia pouquíssimos telefones na Marinha Grande, nesta altura.)

 

IV

O que não há no arquivo são justificações de faltas à Mocidade Portuguesa Feminina. Seriam as raparigas mais cumpridoras? Estes documentos não nos permitem responder. Mas ensinam-nos, por outro lado que, ao contrário do que acontecia com a MP, a inscrição na MPF não era obrigatória – o que poderá ajudar a explicar as diferenças de assiduidade.

Assim, a Figura 3 (na galeria) mostra uma carta enviada à escola pelo Comissariado Geral da MPF – no dia 25 de abril, curiosamente – com uma ordem que à primeira vista não se percebe: a escola devia entregar ao centro da MPF da Marinha Grande uma determinada quantia em dinheiro, o qual tinha sido cobrado – pela própria escola – às alunas não inscritas na organização.

Leram bem: dinheiro pago pelas alunas não inscritas. Em vez de pagar para participar nas atividades, como acontece em muitos sítios, aqui era preciso pagar para não participar! Mas que sentido tinha isto? Do ponto de vista da ditadura, fazia muito sentido: quem não tivesse dinheiro, não tinha outro remédio senão alinhar; e quem tivesse e não quisesse inscrever-se, via-se perante um dilema: ou colaborava participando, ou colaborava financiando; não havia, na verdade, escapatória.

Uma ditadura é isso mesmo: uma forma extrema de condicionar os comportamentos e as opiniões.

 

V

Corrijo: a ditadura é uma tentativa extrema de controlar os comportamentos e as opiniões.  Como afirmava, em 1963 (onze anos antes do 25 de abril) o poeta Manuel Alegre:

 

Mesmo na noite mais triste

em tempos de servidão

há sempre alguém que resiste

há sempre alguém que diz não.

 

Isso mesmo aconteceu na Escola Industrial Guilherme Stephens, em 1945, nas aulas da professora e pintora que me trouxe a este arquivo: Tereza Arriaga.

Tereza Arriaga lecionava desenho. Numa escola industrial, tinha sobretudo de ensinar desenho geométrico, desenho técnico, desenho à vista. Mas nos sumários das suas aulas também se lê, muitas vezes, “Desenho livre com tema”. Desenho livre queria dizer que não era um desenho à vista, para copiar um objeto, mas sim um desenho representando o que cada um pensava, ou imaginava, a respeito do tema proposto.

E que temas propunha esta professora? Podem ver alguns na galeria acima. Temas do dia a dia dos alunos e do seu contexto próximo. Percebe-se que ela queria que pensassem sobre o mundo. Por exemplo: “uma família operária”, “o  trabalho nas oficinas ou fábricas da Marinha Grande”, “as empalhadeiras”, “os homens que arranjam as estradas”, “os mendigos da feira”, “a máquina”, “os descarregadores”... Mas também “os transportes”, “uma grande cidade”, “o circo”, “a Quinta-feira da Ascensão” ou “o vento”, entre muitos outros. Alguns destes temas eram próximos daqueles escolhidos pelos artistas de tendência neorrealista, que procuravam fazer uma arte com significado social, falando das vidas difíceis da maior parte dos portugueses naquele tempo. Era como se Tereza Arriaga quisesse também dar aos seus alunos uma noção das tendências mais recentes da arte.

Além disso, numa altura em que a escola era rígida e o professor tudo decidia, os seus sumários registam também desenhos com tema livre, assim como temas que parece terem sido sugeridos pelos próprios alunos. Por exemplo, “o box” ou “o foot-ball” (em 1945 ainda não se tinham aportuguesado estas palavras).

 

VI

Estes documentos dão-nos a ver, assim, tanto a máquina da repressão como a coragem de lhe resistir. Mesmo “em tempos de servidão”, como diz o poeta, a coragem da professora Tereza Arriaga (e de muitos outros professores, noutros locais e momentos) desafiava a escola prisioneira e abria, na sua sala de aula da Marinha Grande, espaços de  interrogação e de escolha, espaços de liberdade. Era uma escola prisioneira, mas...

Dos temas que registou nos seus sumários, o meu preferido é o do dia 22 de maio de 1945: “o futuro”. Imaginem, desenhar o futuro! Que grande exercício de liberdade!

A história – incluindo, à sua medida, esta nossa cápsula do tempo – mostra-nos como é importante, 50 anos depois do 25 de abril, continuarmos a fazer esse desenho: para que não voltem a tentar roubar-nos o direito de dizer não.

 

25 de Abril, sempre!

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