Três perguntas para… Professora mais velha da escola Guilherme Stephens
Fernanda Cruz
1. Tendo ainda uma idade muito jovem quando se deu o 25 de abril de 1974, diga-nos que consciência teria das restrições impostas pelo regime ditatorial em que vivíamos e do medo que as pessoas sentiriam.
A minha consciência política, na infância, alimentava-se das histórias que o meu pai contava da campanha de Humberto Delgado, em 1958, em que ele tinha sido um simples figurante anónimo no meio da multidão. Também a enorme revolta que sentiu, e me transmitiu, quando do seu assassinato pela PIDE. Estes assuntos eram falados em minha casa.
Em abril de 1974, tinha 14 anos e frequentava o 5.º ano (que corresponde ao atual 9.º) no Liceu Nacional de Carolina Michaëlis, no Porto. Era um liceu exclusivamente feminino - só alunas, professoras e contínuas. E assim se manteve até ao ano letivo de 78/79, já eu estava no 2.º ano da faculdade. Ah! Havia um homem, já idoso e corcunda - era o jardineiro.
Em todos os liceus e escolas comerciais do Porto, as alunas usavam batas com cores diferentes para se distinguirem. Assim, sabíamos a que liceu pertenciam pela cor da bata que usavam. As batas eram justificadas para não se distinguirem as meninas ricas, das remediadas, ou das pobres. Com a bata éramos todas iguais; um uniforme, uma farda, era o que se via. Por baixo da bata, estavam os tecidos caros, de bom figurino, modelos feitos na modista, mas também podia estar roupa muito usada, coçada, remendada mesmo, ou confecionada na máquina de costura da mãe. O meu liceu tinha ainda uma particularidade que o distinguia de todos - a nossa bata de um azul acinzentado indicava, pelo número de botões cosidos à frente no cinto, o ano que frequentávamos!
Havia um outro pormenor que recordo do interior do edifício do meu liceu. Tinha umas escadas enormes e gélidas, em mármore branco, nas duas alas laterais, só para as alunas e funcionárias. Tinha outras escadas de tamanho normal, na parte central da construção, por onde circulavam exclusivamente as professoras! Estávamos proibidas de as utilizar, mas sempre foram uma enorme tentação. Após a revolução fomos autorizadas a utilizá-las também. Que grande transformação!
Durante os sete anos em que fui aluna do Carolina, conheci apenas duas Reitoras, inacessíveis e quase sempre invisíveis (a Eulália Balacó e, a última, a Engrácia Malcata). Mas, logo em maio de 74, passámos a ter um órgão colegial - uma Junta Diretiva. Nos Conselhos Diretivos que se seguiram havia de marcar presença a docente Engrácia Castro que, em 1995, a meu convite, haveria de fazer uma ACD, na Guilherme Stephens, sobre "O Diretor de Turma - o desafio de uma multiplicidade de papéis".
Essa quinta-feira, 25 de abril, não seria nunca um dia normal na minha vida. A minha mãe estava internada para fazer uma cirurgia às varizes. Eu estava em casa de uma amiga, que vivia mesmo junto ao liceu, e a quem toda a vida chamei "tia".
Por esta razão, naquele dia, não fiz a habitual viagem de comboio desde a estação da Senhora da Hora até à Avenida da França, na Boavista. Hoje, este percurso integra um dos itinerários do metropolitano do Porto. Naquela época, o comboio era ainda puxado por uma gigantesca locomotiva negra e alemã, que funcionava a carvão, e as carruagens tinham os bancos de passageiros em madeira. Só depois da revolução se generalizou o uso das automotoras a diesel naquela linha.
Nesse dia, as aulas decorreram como de costume até meio da manhã. Cerca das 10h30/11h, avisaram, em todas as salas, que fossemos para casa, pois o liceu ia encerrar. Fora dos portões já havia alguns pais à espera das filhas. Nas ruas circundantes ainda vi, estranhamente, alguns carros e tanques militares, porque o Liceu ficava muito próximo do Quartel do Monte Pedral, na Ramada Alta. Esses veículos saíram de vários quartéis da cidade para ocuparem posições junto à Ponte da Arrábida.
As belíssimas escadas do Carolina, bem floridas por ser primavera, separavam os dois liceus - o feminino e o dos rapazes, o D. Manuel II - encheram-se rapidamente de jovens, de ambos os estabelecimentos de ensino, que aproveitaram para confraternizar. Uns tempos após a revolução, esse liceu retomou o seu antigo nome, homenageando o primeiro deputado republicano portuense - Liceu Rodrigues de Freitas, designação que mantém até hoje.
Desse dia recordo muito bem as imagens da televisão, de ver e ouvir muitos comunicados e discursos, difundidos também pela rádio. O meu pai comprou, e deixou-me, vários jornais dessa primeira semana de Liberdade. A operação da minha mãe chegou até a ser adiada e era eu que lhe ia fazendo os relatos do que se passava fora do hospital. Foi desta forma que ela se foi acalmando, pois sentia muito medo do que poderia acontecer. Afinal, não havia razão para isso - era a Revolução dos Cravos.
No final de abril, adoeci com varicela e fiquei de quarentena. Este isolamento não me permitiu sair à rua, com os meus amigos, no primeiro 1.º de maio da Liberdade, nem sequer pude visitar a minha mãe. O que recordo foi visto da janela de casa: multidões a cantar, muita alegria e muitos cartazes. As multidões livres desse dia marcaram-me profundamente. Contudo, as minhas recordações confundem-se com as imagens muito repetidas pela televisão.
Nos dias e meses que se seguiram à Revolução fui vivendo uma época fabulosa em que amigos e amigas, todos mais velhos, iam participando em manifestações, reuniões e comícios partidários. Não tendo autorização paternal para os acompanhar, ouvia os seus relatos e aprendia, aprendia muito. Fui compreendendo a importância das mudanças que vi acontecer e que hoje fazem parte da história do meu país e da minha vida.
2. De que forma viveu os primeiros tempos da revolução e desde quando teve consciência de que esta tinha provocado grandes transformações na nossa sociedade?
A minha mãe votou pela primeira vez na vida em 1975, nas eleições constituintes. Acompanhei-a e foi um dia de festa, muito especial para as mulheres portuguesas que adquiriram esse direito com a Revolução. Eu pude exercer esse dever, somente, em 1979. Senti-me muito importante e cheia de dignidade quando fui cumprir esse direito que a Democracia me proporcionou!
Mas a minha primeira intervenção cívica aconteceria no ano de 1976. Terminado o 7.º ano do liceu, tinha sido decretado que os jovens deveriam cumprir obrigatoriamente o Serviço Cívico Estudantil, antes de ingressarem na faculdade. Assim, na única Associação de Pais da Senhora da Hora, onde morava, fui convidada para ocupar o tempo livre que tinha e dar aulas, à noite, a adultos que não tinham o diploma do exame da 4.ª classe. "Era uma menina estudada!", queriam dizer "com estudos" só porque terminara o liceu. Os meus alunos todos sabiam ler e escrever, mas encontravam-se em diferentes etapas de escolaridade - uns tinham a 3.ª classe, outros a 4.ª, mas incompleta. Em comum, todos tinham abandonado a escola e a escrita há muito tempo. Inesperadamente, todos eram melhores com os números - a matemática – pois a vida a isso os obrigara! Desta forma, durante cinco meses, preparei quatro homens e uma mulher com idades entre os 32 e os 58 anos (eu tinha apenas 17!) e levei-os a exame. Todos passaram, o que foi motivo de grande orgulho para mim, para os meus pais e para a coletividade. Foi este o meu serviço cívico! Também durou pouco mais, pois viria a ser extinto em 1977. Não recebi qualquer remuneração pelo trabalho realizado. Houve, depois, uma festa na Associação em que fui contemplada com uma singela lembrança - uma esferográfica Parker e, ainda, uma peça de roupa de casa, para o enxoval!
Este quotidiano, estas vivências já fazem parte do baú da história e das minhas recordações. Mas esta realidade do analfabetismo, ou da baixa escolarização, consciencializou-me desde muito cedo com a enorme fortuna que tive em ser a primeira da minha família a ingressar no ensino superior e terminar uma licenciatura. Quanto à sementinha de ser professora, talvez tenha germinado a partir deste episódio...
3. Se lhe dessem a hipótese de estar com algumas das pessoas que participaram no 25 de abril de 1974 ou nos tempos revolucionários que se lhe seguiram, diga-nos quais seriam as três que convidaria para almoçarem consigo e quais os assuntos que gostaria de abordar nessa conversa.
Se pudesse convidar para almoçar três pessoas que deixaram marcas profundas neste país, seriam: Capitão Salgueiro Maia, Mário Soares e Mª de Lurdes Pintassilgo.
Não iria conversar sobre o que motivou cada um deles à intervenção distinta e histórica que tiveram na Revolução e na Democracia, mas sim tentar compreender o ensinamento de como fazer crescer o seu legado na conjuntura atual.
Como foi possível chegarmos ao meio século de Democracia sem cumprir os desígnios, que já Sérgio Godinho cantava “...a Paz, o Pão, Saúde, Educação”?
Como transmitir às novas gerações o exemplo de resistência, de proatividade e empenho social respeitando os outros, agora? Dado que os que viveram o 25 de abril vão, pela lei da vida, desaparecendo.
Descobrir onde, eventualmente, falhámos na transmissão dos valores dos seus legados?
Que futuro tem a Democracia com estes novos desafios que se apresentam na sociedade/ política de hoje?
Comments